quarta-feira, 10 de junho de 2009

Bento XVI e a Hermenêutica da Continuidade









Em uma postagem anterior havíamos publicado um artigo sobre a importante intervenção do Papa Bento XVI na abertura do Congresso Eclesial da diocese de Roma, onde voltou a falar da necessidade de uma correta hermenêutica do Concilio Vaticano II, um dos temas centrais do seu pontificado do qual já havia tratado de modo mais profundo no pragmático discurso de dezembro de 2005.

Agora publicamos alguns trechos do discurso:

(...) O Concílio Vaticano II, querendo transmitir pura e íntegra a doutrina sobre a Igreja maturada no decorrer de dois mil anos, deu dela "uma definição mais meditada", ilustrando antes de tudo a sua natureza mística, isto é, de "realidade imbuída de presença divina, e por isso sempre capaz de explorações novas e cada vez mais profundas" (Paulo VI, Discurso de abertura da segunda sessão, 29 de Setembro de 1963). Pois bem, a Igreja, que tem origem no Deus trinitário, é um mistério de comunhão. Enquanto comunhão, a Igreja não é uma realidade apenas espiritual, mas vive na história, por assim dizer, em carne e osso. O Concílio Vaticano II descreve-a "como um sacramento, ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano" (Lumen gentium, 1). E a essência do sacramento é precisamente que no visível se toca o invisível, que o visível tocável abre a porta ao próprio Deus. A Igreja, dissemos, é uma comunhão, uma comunhão de pessoas que, pela acção do Espírito Santo, formam o Povo de Deus, que é ao mesmo tempo o Corpo de Cristo. Reflictamos um pouco sobre estas duas palavras-chave. O conceito "Povo de Deus" nasceu e desenvolveu-se no Antigo Testamento: para entrar na realidade da história humana, Deus elegeu um determinado povo, o povo de Israel, para que seja o seu povo. A intenção desta escolha particular é alcançar, através de poucos, os muitos, e dos muitos a todos. A intenção, com outras palavras, da eleição particular é a universalidade. Através deste Povo, Deus entra realmente de modo concreto na história. E esta abertura à universalidade realizou-se na cruz e na ressurreição de Cristo. Na Cruz Cristo, assim diz São Paulo, abateu o muro da separação. Dando-nos o seu Corpo, Ele une-nos neste seu Corpo para fazer de nós uma coisa só. Na comunhão do "Corpo de Cristo" todos nos tornamos um só povo, o Povo de Deus, onde – citando de novo São Paulo – todos são uma só coisa e não há mais distinção, diferença, entre grego e judeu, circunciso e incircunciso, bárbaro, xiita, escravo, hebreu, mas Cristo é tudo em todos. Derrubou o muro da distinção de povos, raças, culturas: todos estamos unidos em Cristo. Assim vemos que os dois conceitos "Povo de Deus" e "Corpo de Cristo" se completam e formam juntos o conceito neotestamentário de Igreja. E enquanto "Povo de Deus" expressa a continuidade da história da Igreja, "Corpo de Cristo" expressa a universalidade inaugurada na cruz e na ressurreição do Senhor. Portanto, para nós cristãos, "Corpo de Cristo" não é só uma imagem, mas um verdadeiro conceito, porque Cristo nos oferece o seu Corpo real, e não só uma imagem. Ressuscitado, Cristo une-nos a todos no Sacramento para fazer de nós um só corpo. Por conseguinte, os conceitos "Povo de Deus" e "Corpo de Cristo" completam-se: em Cristo tornamo-nos realmente o Povo de Deus. E "Povo de Deus" significa portanto "todos": começando pelo Papa até à última criança batizada. A primeira Oração eucarística, o chamado cânone romano escrito no século IV, distingue entre servos – "nós teus servos" – e "plebs tua sancta"; portanto, se se quiser distinguir, fala-se de servos e plebs sancta, enquanto que a expressão "Povo de Deus" expressa todos juntos no seu comum ser Igreja.

Depois do Concílio esta doutrina eclesiológica encontrou amplo acolhimento, e graças a Deus muitos bons frutos maturaram na comunidade cristã. Mas devemos também recordar que a recepção desta doutrina na prática e a consequente assimilação no tecido da consciência eclesial, não se verificaram sempre e em toda a parte sem dificuldades e segundo uma justa interpretação. Como tive a ocasião de esclarecer no discurso à Cúria Romana a 22 de Dezembro de 2005, uma corrente interpretativa, apelando-se a um presumível "espírito do Concílio", julgou estabelecer uma descontinuidade e até uma contraposição entre a Igreja antes e a Igreja depois do Concílio, ultrapassando por vezes os próprios confins objectivamente existentes entre o ministério hierárquico e as responsabilidades dos leigos na Igreja. A noção de "Povo de Deus", em particular, foi interpretada por alguns segundo uma visão puramente sociológica, com uma ruptura quase exclusivamente horizontal, que excluía a referência vertical a Deus. Trata-se de uma posição em aberto contraste com a palavra e com o espírito do Concílio, o qual não quis uma ruptura, uma outra Igreja, mas um verdadeiro e profundo renovamento, na continuidade do único sujeito Igreja, que cresce no tempo e se desenvolve, permanecendo contudo sempre idêntico, único sujeito do Povo em peregrinação.

Em segundo lugar, deve ser reconhecido que o despertar de energias espirituais e pastorais no decurso destes anos não produziu sempre o incremento e o desenvolvimento desejados. De fato, deve-se registrar em certas comunidades eclesiais que, a um período de fervor e de iniciativa, se seguiu um tempo de enfraquecimento do empenho, uma situação de cansaço, por vezes quase de estagnação, também de resistência e de contradição entre a doutrina conciliar e diversos conceitos formulados em nome do Concílio, mas na realidade opostos ao seu espírito e à sua letra. Também por esta razão, ao tema da vocação e missão dos leigos na Igreja e no mundo, foi dedicada a assembleia ordinária do Sínodo dos Bispos de 1987. Este fato diz-nos que as luminosas páginas dedicadas pelo Concílio ao laicado ainda não tinham sido suficientemente traduzidas e realizadas na consciência dos católicos e na prática pastoral. Por um lado ainda existe a tendência a identificar unilateralmente a Igreja com a hierarquia, esquecendo a comum responsabilidade, a comum missão do Povo de Deus, que somos todos nós em Cristo. Por outro lado, persiste também a tendência a conceber o Povo de Deus como já disse, segundo uma ideia puramente sociológica ou política, esquecendo a novidade e a especificidade daquele povo que só se torna povo na comunhão com Cristo.

Queridos irmãos e irmãs, a pergunta surge espontânea: a que ponto está a nossa Diocese de Roma? Em que medida é reconhecida e favorecida a co-responsabilidade pastoral de todos, particularmente dos leigos? Nos séculos passados, graças ao testemunho generoso de tantos batizados que dedicaram a sua viva para educar na fé as novas gerações, para curar os doentes e socorrer os pobres, a comunidade cristã anunciou o Evangelho aos habitantes de Roma. Esta mesma missão é confiada hoje a nós, em situações diversas, numa cidade na qual não poucos batizados esqueceram o caminho para a Igreja e os que não são cristãos não conhecem a beleza da nossa fé. O Sínodo Diocesano, querido pelo meu amado predecessor João Paulo II, foi uma efetiva receptio da doutrina conciliar, e o Livro do Sínodo comprometeu a Diocese a tornar-se cada vez mais Igreja viva e laboriosa no coração da cidade, através da ação coordenada e responsável de todas as suas componentes. A Missão da Cidade, que a seguiu em preparação para o Grande Jubileu do ano 2000, permitiu que a nossa comunidade eclesial tomasse consciência do fato que o mandato de evangelizar não diz respeito a alguns, mas a todos os batizados. Foi uma saudável experiência que contribuiu para fazer maturar nas paróquias, nas comunidades religiosas, nas associações e nos movimentos a consciência de pertencer ao único Povo de Deus, que – segundo as palavras do apóstolo Pedro – Deus "adquiriu, a fim de anunciardes as Suas virtudes" (cf. 1 Pd 2, 9). E por isto desejamos dar graças esta tarde.

Contudo ainda resta muito caminho para percorrer. Demasiados batizados não se sentem parte da comunidade eclesial e vivem à margem dela, dirigindo-se às paróquias só nalgumas circunstâncias para receber serviços religiosos. São ainda poucos os leigos, em proporção ao número dos habitantes de cada paróquia que, mesmo professando-se católicos, não se disponibilizam para trabalhar nos diversos campos apostólicos. Certamente, não faltam as dificuldades de tipo cultural e social mas, fiéis ao mandato do Senhor, não podemos resignar-nos à conservação do existente. Confiantes na graça do Espírito, que Cristo ressuscitado nos garantiu, devemos retomar com zelo renovado o caminho. Que vias podemos percorrer? É preciso em primeiro lugar renovar o esforço por uma formação mais atenta e pontual à visão de Igreja da qual falei, e isto tanto da parte dos sacerdotes como dos religiosos e dos leigos. Compreender sempre melhor o que é esta Igreja, este Povo de Deus no Corpo de Cristo. É necessário, ao mesmo tempo, melhorar a orientação pastoral, de modo que, no respeito das vocações e dos papéis dos consagrados e dos leigos, se promova gradualmente a co-responsabilidade do conjunto de todos os membros do Povo de Deus. Isto exige uma mudança de mentalidade no que diz respeito particularmente aos leigos, passando do considerá-los "colaboradores" do clero ao reconhecê-los realmente "co-responsáveis" do ser e do agir da Igreja, favorecendo a consolidação de um laicado maduro e comprometido. Esta consciência comum de todos os batizados de ser Igreja não diminui a responsabilidade dos párocos. Compete precisamente a vós, queridos párocos, promover o crescimento espiritual e apostólico de quantos já são assíduos e comprometidos nas paróquias: eles são o núcleo da comunidade que servirá de fermento para os outros. Para que tais comunidades, mesmo se algumas vezes numericamente pequenas, não percam a sua identidade e o seu vigor, é necessário que sejam educadas na escuta orante da Palavra de Deus, através da prática da lectio divina, ardentemente desejada pelo recente Sínodo dos Bispos. Alimentemo-nos realmente da escuta, da meditação da Palavra de Deus. A estas nossas comunidades nunca deve faltar a consciência de que são "Igreja" porque Cristo, Palavra eterna do Pai, as convoca e as faz seu Povo. De facto, a fé é por um lado uma relação profundamente pessoal com Deus, mas possui uma componente comunitária essencial e as duas dimensões são inseparáveis. Assim poderão experimentar a beleza e a alegria de ser e de se sentir Igreja também os jovens, que estão mais expostos ao crescente individualismo da cultura contemporânea, a qual comporta como inevitáveis consequências o enfraquecimento dos vínculos interpessoais e o debilitar-se das pertenças. Na fé em Deus estamos unidos no Corpo de Cristo e tornamo-nos todos unidos no mesmo Corpo e assim, precisamente crendo de forma profunda, podemos expressar também a comunhão entre nós e superar a solidão do individualismo.

Se é a Palavra que convoca a Comunidade, é a Eucaristia que a torna seu corpo: "Porque havendo um só pão – escreve São Paulo – nós, sendo muitos, somos um só corpo: de facto todos pertencemos ao único pão" (1 Cor 10, 17). Portanto a Igreja não é o resultado de uma soma de indivíduos, mas uma unidade entre aqueles que são alimentados pela única Palavra de Deus e pelo único Pão de vida. A comunhão e a unidade da Igreja, que nascem da Eucaristia, são uma realidade da qual devemos ter cada vez mais consciência, também no nosso receber a santa comunhão, ser cada vez mais conscientes de que entramos em unidade com Cristo e assim tornamo-nos, entre nós, uma só coisa. Devemos aprender sempre de novo a guardar e defender esta unidade de rivalidades, de pretensões e ciúmes que podem nascer nas e entre as comunidades eclesiais. Em particular, gostaria de pedir aos movimentos e às comunidades que surgiram depois do Vaticano ii, que também no interior da nossa Diocese são um dom precioso do qual devemos agradecer sempre ao Senhor, gostaria de pedir a estes movimentos, que, repito, são um dom, que se preocupem sempre por que os seus percursos formativos conduzam os membros a maturar um verdadeiro sentido de pertença à comunidade paroquial. Centro da vida da paróquia, como disse, é a Eucaristia, e particularmente a Celebração dominical. Se a unidade da Igreja nasce do encontro com o Senhor, não é secundário então que a adoração e a celebração da Eucaristia sejam muito cuidadas, dando a oportunidade a quem nelas participa de experimentar a beleza do mistério de Cristo. Dado que a beleza da liturgia não é "mero esteticismo, mas modalidade com que a verdade do amor de Deus em Cristo nos alcança, fascina e arrebata" (cf. Sacramentum caritatis, 35), é importante que a Celebração eucarística manifeste, comunique, através dos sinais sacramentais, a vida divina e revele aos homens e às mulheres desta cidade o verdadeiro rosto da Igreja (...).

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Fonte:subsídios litúrgicos summorum pontificum