segunda-feira, 4 de maio de 2009

CONSIDERAÇÕES SOBRE A LITURGIA CATÓLICA Dom Guéranger


TERCEIRO ARTIGO

A TERCEIRA CARACTERÍSTICA DA LITURGIA É A AUTORIDADE.



É impossível que a linguagem da Igreja indefectível contenha erro.

Respostas aos sectários das novas liturgias.

A antigüidade e a universalidade acarretam uma terceira característica, que denominamos autoridade. A Igreja a possui em si em grau eminente, porque suas crenças remontam do primeiro dia de sua existência, e porque, em todos os lugares e épocas, conservou-as fortes e imutáveis. Este caráter inimitável, que a faz ser o que ela é, está impressa em suas obras. Por isso nunca puderam compreender, e muito menos imitar, seus pensamentos, que à primeira vista são exteriores e indiferentes; por isso, tentaram estabelecer doutrinas imponentes. O protestantismo já o confessou mais de uma vez, quando por esforços infinitamente superiores aos da Igreja só produziram confusão e esterilidade. Dentre as características da Igreja, a autoridade é a única que não admite paródias, pois a autoridade é a presença real da Divindade.



A linguagem antiga e universal – a liturgia – é, entre as instituições da Igreja Católica, a que mais deve se mostrar imbuída de autoridade. Como é majestosa, sonora a voz que nos percute os ouvidos através das eras e, semelhante a voz do mesmo Deus, rompe as cadeias do orgulho e abala o fundamento dos desertos! Como é grandioso o livro que inscreve a palavra do séculos, e invencível o ensinamento egresso do interior do santuário, saído do pé do altar do Senhor! A verdade não vem apenas do púlpito, mas também se oferece e retém no silêncio do recolhimento e da oração, no instante em que a assembléia reúne-se em nome de Jesus. Quem ousará contestar sua infalível verdade? Quem ousara confrontá-la com as idéias de ontem?

Gozam as sagradas orações, nas quais os dogmas se desenvolvem em ricos corolários, do mais alto grau de autoridade. Não ignora o católico que a Igreja, palavra que não lhe sai da ponta da língua, é a coluna e apoio da verdade. Estão cientes da incompatibilidade entre trevas e luz, e de que a linguagem da Esposa não contradiz o pensamento do Esposo. É permitido pois dizer que é certo, na medida em que algo pode ser, que a liturgia romana não contém nem conteria erro no ensinamento e na confissão dos dogmas; bem ao contrário, todas as palavras deve ser acatadas com profundo respeito e docilidade, por quem é e deseja permanecer membro da verdadeira Igreja; o universo fulminaria de anátema quem ousasse julgar a palavra daquela que recebera o nobre encargo de transmitir a todo homem vindo a este mundo a luz da verdade.



Mas a alma se espanta quando fixa o olhar sobre estas liturgias efêmeras, nem universais no tempo, nem católicas no espaço, que de próprio alvitre não querem ser a linguagem da Igreja! Como é possível que se encontrem homens que tenham ousado substituir a palavra dos séculos com a palavra do dia, a palavra infalível com a palavra frágil e muitas vezes mentirosa do homem?

Mais impressionante ainda, como ousaram conferir à estranha substituição as honras de um acontecimento glorioso para a Igreja galicana [1]? Como deram crédito a tais homens? É assim tão fácil encantar, com modos lisonjeiros, as almas pouco ciosas da santa delicadeza da fé?


0s autores e os defensores da nova liturgia opõem-nos uma objeção especiosa, vitoriosa em si mesma, caso não cedesse sob o próprio peso. Dizem o seguinte:

“Eles se lamentam das supressões que fizemos nas antigas orações, repetindo que nossas liturgias se apresentam desprovidas da autoridade que os séculos conferiram às velhas fórmulas romanas, mas em verdade se perdeu alguma coisa? No lugar das palavras dos santos que, antes de tudo, eram apenas homens, quiséramos as palavras do próprio Deus. A Escritura em si mesma já tem as rubricas dos novos ofícios. Vosso respeito pelos novos breviários dar-nos-á a medida de vossa veneração aos livros sagrados”.

Muitas almas boas se deixam fisgar por tal sofisma. Contudo, vamos à resposta. Vossas liturgias, dizeis vós, se comparam em autoridade com as nossas: a Santa Escritura vos serve de rubrica. Levando em consideração, por um instante, vosso testemunho, pergunto o que aconteceu às palavras sagradas que saíam de vossas bocas? Por que a Igreja, amedrontada, não mais as reconhece como suas? Por acaso, ela havia se enganado? Tornastes-vos desprezíveis considerando palavra de Deus as fantasias da alma humana? A palavra de Deus! Quem vos deu o direito de interpretá-las, submetendo-as à uma ordem completamente nova, e de calar as centenas de bocas da tradição, sem as quais as Escrituras seria um livro selado?



Ignorais que é a autoridade da Igreja que determina a crença do católico no Evangelho e nas Escrituras? Estais cientes que não raro acusam tais exegeses sem garantias de falsear o sentido delas, senhores sectários da interpretação engenhosa das Escrituras? Sabeis que olhos circunspetos por mais de uma vez já leram aí os segredos duma seita que profana o que toca? Vós acreditais que, sem a Igreja, tendes sempre o sentido verdadeiro das Escrituras, e exigis para vossas interpretações veneração semelhante a que damos às palavras que saem da Igreja – não vos enganeis, contudo. O uso das Escrituras é mui recomendável. Leiamo-las e meditemo-las incessantemente, mas não acreditemos que todas as exegeses que o espírito particular garanta estejam certas, nem que se pode confrontá-las à confissão de fé da Igreja. Prestai atenção, e vede onde vão parar. De qualquer forma, tem de se concordar: não se poderia encontrar um erro sequer na santa liturgia romana, sem que a Igreja se convencesse de erro em seu ensinamento e de, por isso, estar desprovida de santidade e infalibilidade; isso não impede, ao contrário, que a liturgia francesa, a mais difundida entre todas, encerre um algo de suspeito; e de fato, ela encerra mesmo algo de suspeito. Mais ainda, se por acaso se concedesse – mas isso jamais acontecerá – que vossa autoridade na exegese das Escrituras se equiparasse a das palavras da liturgia romana, ainda haveria uma barreira terrível na seleção das passagens dos Santos Padres, meio explorado com sucesso pelos jansenistas em seus breviários. E quem nos asseguraria da ortodoxia dos hinos e das legendas?



Continuando, se os bispos – pastores do povo e juizes da fé – tivessem composto as novas liturgias, tal circunstância talvez desse a elas alguma importância e, com um pouco mais de entusiasmo, poder-se-ia ver nesta fábrica a obra da Igreja de França. Mas eis como tudo aconteceu, há mais ou menos um século. Uns meros padres, meros doutores em teologia investigaram avidamente o novo campo aberto à criatividade eclesiástica. Sustentados e nutridos pelo espírito de partido, armados com a mútua concordância, viu-se neles o zelo infatigável na composição da nova liturgia – sequer tomavam fôlego - a começar do domingo do Advento até o último domingo depois de Pentecostes. Em meio a seus importantes trabalhos, por vezes uma rivalidade inaudita arrancava-os do descanso do gabinete. Embatiam-se os novos planos, cada qual causando furor a seu turno; um breviário travava formidável luta contra outro breviário; um missal derrotava outro missal. Brochuras que mal nos chegavam às mãos iniciavam o público nas diversas circunstâncias desta guerra litúrgica. Tratavam-se por heréticos de parte a parte, e algumas vezes uma e outra parte tinham razão. Feliz de quem conseguia que seu trabalho fosse apreciado, recebendo assim a palma diante dos doutos e infatigáveis concorrentes! Durante muito tempo, o vencido nutria em segredo a esperança de enfim ver um bispo fazer justiça às belezas do seu breviário, aguardando o dia em que uma preclara diocese viesse solicitar o favor de apelidá-la de Breviarium Ecclasiasticum, para o público gozá-lo sob esta condição. Não, esta não foi obra do episcopado, mas concebida e executada por homens que não pertenciam à hierarquia; as cartas pastorais que apareceram junto às composições, totalmente novas em doutrina, foram redigidas mais de uma vez, à guisa de prefácio, por aqueles que fabricaram a obra.



Realmente, considerando apenas a dignidade da liturgia católica, não se sabe o que pensar quando se testemunha tantas igrejas se apropriarem com elevadíssimo respeito da linguagem e das idéias de um homem, algumas vezes um sectário, escolhendo docilmente por expressão de sua fé e de seus juramentos as palavras que saíram daquela cabeça. É certo que não há muita liberdade, mas o destino desta nova liberdade seria o mesmo das outras. Sejamos menos livres, por dever de submissão à autoridade superior. Infelizmente, é estranho que não percebam sua inconseqüência. Todos os dias, escutais os padres a vos dizer, quando falam do breviário ou do missal de sua diocese: “A Igreja nos diz tal coisa; a Igreja se exprime de tal modo sobre o mistério; vejam como a Igreja celebra as louvações de tal santo: não é admirável? Como suas palavras tem o perfume da piedade! Como são repletas de dignidade e conveniência!”


Ah, não, dir-lhes-ia eu, a Igreja não vos disse nada disso. Nunca vos afirmou isso, a menos que vós não sejais da Igreja, mas de outra. Não, a Igreja não dissera nada disso: é a história que nos diz que Mézenguy, Foinard, Vigier, Rondet, Valla e outras personagens, graça a Deus, não pertencem à Igreja, eu vos asseguro.

Assim, qual foi o resultado de tudo isso? Um desprezo universal em face das liturgias artificiais, uma futilidade de julgamentos inconcebível até nos galicanos mais empedernidos. Assim que se admitiu que um breviário ou missal são obras como outras quaisquer, a crítica, antes de tudo pasmada em vê-las incluídas em seu domínio, logo se valeu a mancheias de seus direitos. Este breviário está bem feito, aquele outro mal feito, dizem-nos todos os dias, e depois que levantaram dúvidas sobre a linguagem da Igreja, permitiram-lhes afirmar sem constrangimentos que a Igreja exprime ou não adequadamente seu pensamento, por causa de fulano ou sicrano, que tinha mais ou menos talento. Finalmente, tornou-se a liturgia um gênero entre outros, passível de se aperfeiçoar dia a dia. Eis aí a autoridade das novas liturgias: nem os partidários mais ferrenhos podem contestar a verdade do quanto foi dito.

Querem atribuir aos novos hinos, um triunfo da inovação galicana, apesar do total desligamento com as Escrituras, uma autoridade que não têm nem saberiam ter. Como não recebessem a sanção da Igreja, o que de fato exprimem? A verdade católica?



Creio neles, mas quem me certifica deles? Quem imprimiu neles o selo da infalibilidade? Isso não é tudo: vejo homens, contemporâneos que se elevam num instante às dignidades dos postos da Igreja, e que a Igreja de França aceita nesta qualidade. Talvez, para que sejam admitidos como voz do povo fiel, haja neles alguma autoridade, virtude, seriedade ou fé que os tornem dignos da honraria mais sublime a que se eleva a inteligência. Destinados a eclipsar, a lançar nas trevas as poesias bárbaras de Santo Ambrósio, de São Gregório, de Prudêncio, de Sedúlio, de Fortunato, de São Bernardo, eles edificaram e consolaram a Igreja, ombreando com aqueles homens afamados; enfim, para que eles pudessem tranqüilamente repudiar seus pais, os sucessores deviam pelo menos demonstrar o mesmo espírito que animou os antepassados. Seus lábios são puros como os de Isaías, e suas almas puras são as únicas agradáveis a Deus.



Abro estas ricas coletâneas, e me impressiono, como o povo em geral, com a nobreza, a elevação, a riqueza da poesia. Sob o poder do gênio cristão, a lira de Horácio e Píndaro soa como jamais soara. Tão-logo, afirmo: bem-aventuradas as basílicas que reboam os nobres cânticos! Quero conhecer o nome do poeta sublime, a quem foi dado sentir e celebrar os mistérios do céu; informo-me e descubro que mil vozes apaixonadas, que me dizem o nome de um homem profano, destruíram a razão de meu encantamento.



Desapareceu tudo! Entoarão ao pé do altar do Deus de majestade versos de um homem superficial, de gosto profano e espirituoso, que casam tão mal com a gravidade do hábito? Criança de cabelos grisalhos, conforme dizia La Bruyère, homem de companhia agradável, sobretudo bom conviva, a memória dos tempos lhe anotou os dias de noitada na hospedaria de Rambouillet, e de como ingressou de repente para dentro do santuário – e saber que seus hinos estarão de par com os cânticos do Profeta Real, a quem a santa dor e o pungente sentimento das grandezas e misericórdias divinas inspiraram. Ignoro a pureza da fé deste homem, mas deixo-me esquecer as nuvens que por vezes obscurecem o céu; mas a caridade, origem de toda oração, ardia no fundo de seu coração? Desconheço, mas parece que ele também. Por isso dizia com razão o conde de Maistre, um dos nossos maiores, que aqueles hinos não eram orações. Admiro-lhes a pompa, a elevação, mas não há a poesia da religião do amor. As sagradas odes, riquíssimas em imagens e grandes conceitos, não têm unção, e o talento por si só não pode conferi-la. Que há de assombroso nisso? São as palavras de um homem profano que se tornaram palavras sagradas! Os versos que hoje são objeto de seu triunfo, escolho de sua pueril vaidade, amanhã se vão passar por linguagem da Igreja, por falta de algo melhor a exprimir seu pensamento! É certo que a Igreja percebera tal inconveniência, pois que conhece a quem escolheu para seus quadros.

Agora, algo ainda mais estranho: não existe nada mais caro para a Igreja que a fé, a sua vida. A ela repugna a heresia, por isso ordena fugir-lhe e evitá-la; ela sabe que cada uma daquelas palavras são sacrilégios, e tamanha é a repulsa que ela sente do que sai da boca dos revoltados, que admoesta e mesmo proíbe a seus filhos discutirem o que haveria de ortodoxo naquela doutrina.

Todavia, que outro poeta é esse, cuja voz religiosa e sublime se eleva nos templos franceses faz um século? Donde parte as entoações tão emocionantes e puras que até há pouco retumbava em nossos ouvidos? Enfim, a igreja francesa teria encontrado o canto divino por que suspira há tanto tempo?



Antes de felicitá-lo pela realização de seus sonhos, perguntemos aos códices sagrados o nome do poeta imortal, tão altamente inspirado. Nos fastos da Igreja de França, rebrilha o nome do compositor nas páginas mais ilustres. Ela entoa seu hino, tão prazenteira, mostrando com orgulho sua vida e virtudes, associando sua voz com a do homem que reconheceu como fiel. Mas que? É em vão que busco entre seus escritos um só que tenha o selo dos céus. Ele não é homem da Igreja, habita fora de seu seio. O que é mais: uma seita reclama a paternidade e o triunfo das honras que lhe prestaram, admirada que uma voz sufocada sob os anátemas pudesse agradar àqueles que os lançaram... [...]

Dizei-me, pois: sois sempre assim tão otimistas acerca da autoridade de vossas liturgias? Vede sua origem, e enfim julgai-as. Recordai-vos das repetidas correções de que foram alvo até agora, e confessai a substituição das imponentes liturgias de vossos pais, por outras sem autoridade, e cuja origem se deve esconder, para não irritar demais os olhos da fé. Não tremeis diante da possibilidade de que vossas orações sagradas exsudam o erro; não é impossível que, durante uma oração de feição ortodoxa, suba até o Altíssimo pérfidos juramentos heréticos, ou que um sectário esconda o veneno sob palavras em aparência santas. Tais considerações são tanto mais penosas, sobretudo porque a Igreja está aí, apresentando uma liturgia de doutrina certa, com a chancela divina.



Se quisermos examinar de perto a gabada utilização das Escrituras nas novas liturgias, ainda haveria muitas verdades incômodas para se comentar. Ingênua e simploriamente, desejando que conferissem o justo valor a suas exegeses de pretensa engenhosidade, afirmava outrora Collet: “Vistas fora de contexto, muitas antífonas se parecem com os mais belos vasos do mundo, mas se remetidas a suas origens, são os mais deploráveis!” Poderia dar inúmeros exemplos para atestar esta afirmação, mas devo parar aqui. Não temos por fim torturar a piedade; recordar os princípios gerais é o bastante. Digamos tão-somente que, em todas as novas liturgias, sem exceção, este aleijão é mui perceptível, e que suas exegeses estão carentes daquela autoridade que a liturgia romana nos dá, a cada página; estão elas desprovidas do sentido que se esforçam em dar para elas. Caso nos acusem de severidade, a resposta já está na ponta da língua. Antes de tudo, é preciso de ser severo em matéria tão grave, e mais, visto que se quis substituir a antiga liturgia, a liturgia universal por outra mais perfeita, não estamos nós no direito de exigir tal perfeição?



1830

Fonte: www.domgueranger.net

Tradução: Permanência