segunda-feira, 23 de março de 2009

Monsenhor Bernard Fellay: “A Tradição não é um brinquedo nas mãos dos homens”



Monsenhor Bernard Fellay: “A Tradição não é um brinquedo nas mãos dos homens”.


Monsenhor Fellay, após a publicação da carta do Papa aos bispos sobre a questão da Fraternidade São Pio X, num comunicado oficial, o senhor disse que queria considerar o Concílio Vaticano II e o ensinamento pós-conciliar à luz da tradição. Como se diz no jargão jornalístico, é uma notícia?

Mons. Bernard Fellay“Como se diz no jargão teológico, é a substância. Significa que o filtro, a luz que dará o seu verdadeiro sentido ao ensinamento pós-conciliar será sempre o depósito da Revelação. O instrumento para produzir clareza é o magistério perene e constante do Papa a quem Deus confiou a missão de salvaguardar e transmitir a fé. Na filosofia se diz que um ato é preordenado ao objeto. Neste caso, o ato é o magistério, o objeto é o depósito da fé, isto é, a Tradição que São Vicente de Lérins definiu como « aquilo que foi crido sempre, em todos os lugares e por todos ». O Papa é o supremo guardião da Tradição”.


O próprio Papa, explicando que a Igreja não nasce com o Concílio Vaticano II mas dois mil anos antes, disse também que a Tradição não se pode fixar em 1962. O que o senhor acha?

“Nós não queremos parar a Tradição em 1962. Se fomos capazes de seguir todos os ensinamentos da Igreja desde o seu nascimento até os anos sessenta, com todos os seus desenvolvimentos, significa que não somos, como dizem, ‘fixistas’. É verdade que colocamos problemas sobre o Concílio Vaticano II, que contudo se auto definiu ‘concílio pastoral’ e não ‘dogmático’. Isto depende da evidente impossibilidade de inserir na continuidade da Tradição algumas novidades que dele brotam. Recordemo-nos que a Tradição , segundo o ensinamento da Igreja, é uma fonte de Revelação divina, não é um brinquedo nas mãos dos homens, tampouco dos tradicionalistas. O desenvolvimento neste âmbito requer homogeneidade, pode ser um passo do implícito ao explícito, mas não pode jamais estar em oposição ao que é ensinado ao longo dos séculos. A razão de ser da Igreja, guiada pelo papa, está na conservação do depósito da fé que foi entregue por Nosso Senhor”.


O senhor coloca uma ligação ontológica entre o Papa e a Tradição. Certamente, o levantamento da excomunhão que vos tinha atingido em 1988 convida a olhar nesta direção. Mas nem todos o fazem voluntariamente.

“Certamente não o fazem voluntariamente aqueles que não querem mais escutar o novo chamamento da Igreja à militância, ao distanciamento do mundo, à necessidade de seguir os mandamentos para encontrar a salvação eterna. Todos estes estão profundamente insatisfeitos por um passo semelhante”.


Uma das passagens marcantes da carta do Pontífice é aquela em que ele se mostra consciente da crise de fé na qual se encontra até o mundo católico. Qual é, na sua opinião, a conseqüência mais preocupante desta situação?

“Se, fundamentalmente, a crise da Igreja é uma crise de fé, por conseqüência imediata é também uma crise dos ministros que devem transmitir esta fé, os sacerdotes. Se está em crise o sacerdote, as graças que devem ser transmitidas aos homens através do seu ministério, em particular através do sacrifício da missa, não passarão mais ou passarão muito mais dificilmente. Portanto, é necessária uma reforma do sacerdócio, um retorno ao sentido da vocação e à santidade sob todas as formas. O sacerdote é um outro Cristo, nada menos”.


A este respeito, embora não falte de severidade em algumas passagens, o Papa demonstrou em direção aos sacerdotes da Fraternidade São Pio X uma plena delicadeza. O que sentis?

“Penso que se o Papa viu em alguns de nossos sacerdotes excesso ou rigidez, também vê algo mais. Vê a sinceridade, a seriedade. Vê o amor pela Igreja e pela fé, o amor pelas almas. Um amor pronto a suportar muito sofrimento para cumprir a missão de salvar as almas”.


Na sua carta, o Papa, referindo-se às ordenações episcopais celebradas por monsenhor Lefebvre diz: “Uma ordenação episcopal sem o mandato pontifício significa o perigo de um cisma”. Não disse “é um cisma”. Então vós jamais estivestes separados de Roma?

“Nós sempre o dissemos. As ordenações episcopais efetivamente ocorreram sem o acordo explícito do Papa João Paulo II. Mas naquelas circunstâncias históricas era evidente que não se tratava de um ato de rebelião à Santa Sé, nem de uma tentativa de estabelecer uma hierarquia paralela que, de fato, poderia levar a um cisma. Monsenhor Lefebvre, quando decidiu proceder às consagrações, tomou todas as precauções necessárias a fim de evitar qualquer perigo de cisma. Hoje, vinte anos depois, estamos muito felizes que Roma o reconheça”.


Além de alguns intelectuais, muitos católicos têm visto esta carta do Papa como uma oportunidade para colocar em fila um episcopado pouco propenso à obediência. Em alguns pontos, Bento XVI mostra ter se sentido traído. L’Osservatore Romano põe o dedo na ferida, acusando uma parte da Cúria romana pelo vazamento de informações sobre o caso Williamson, criado especialmente para atingir Bento XVI. O que significa tudo isso?

“Quando nós falamos dos problemas do Concílio Vaticano II nos referimos também a problemas desse tipo, que hoje vem evidenciado pelo Papa. Não somos nós a dizê-lo, mas a história, que durante o Concílio se enfrentaram dois partidos, um tradicional, representado principalmente pela Cúria Romana, e um outro progressista. Foi este último a vencer e a colocar imediatamente até mesmo o papado na mira. Hoje demonstra estar cansado, não sabe falar às novas gerações que querem algo mais sadio e mais sagrado. Todavia, não deixou de operar e se bate com as armas mais diversas. O nosso episódio é só o último em ordem de tempo”.


Portanto, é o Papa o verdadeiro alvo?

“É óbvio. O mundo progressista, que se aliou com o espírito moderno liberal, mal vê a Igreja levantar a sua voz forte e clara para restabelecer a verdade, reage atacando o Papa”.


Com a sua carta, o Papa relata o confronto com a Fraternidade São Pio X em seu nível natural, o da doutrina. Isso significa que o Santo Padre vos julga interlocutores dignos de atenção. Com qual ânimo e com quais expectativas vos preparais a este debate?

“É o que pedíamos há algum tempo. Sempre dissemos que o mais grave problema dos textos conciliares está em certas ambigüidades que oferecem a possibilidade de interpretações múltiplas. Do texto de um Concílio se espera a clareza e não a ambigüidade que obriga a considerações posteriores para estabelecer a correta interpretação. De outra maneira, nos perguntar-se-á sempre que coisa é mais importante: o texto ou a interpretação do magistério? Além do mais, é preciso dizer que também existe um problema filosófico. Os documentos conciliares não foram escritos segundo a linguagem da ‘philosophia perennis’, mas conforme aquela da filosofia moderna. Disso decorrem outras questões interpretativas. Portanto, julgamos que se necessitará trabalhar muito e ter em conta as dificuldades. Mas nós estamos nos preparando seriamente. Quando se trabalha para o bem da Igreja, as dificuldades não fazem medo”.


Monsenhor Fellay, quem são estes tradicionalistas?

“São católicos que querem viver como os católicos de todos os tempos, que procuram a salvação imitando os santos e seguindo o que a Igreja sempre ensinou. Em suma, são os católicos comuns bem atentos a não serem surpreendidos pela sirene que lhes convidam ao casamento num mundo hostil a Nosso Senhor”.

Entrevista de Dom Bernard Fellay concedida a Il Flogio. Fonte: Blog Messa in Latino
fonte:fratres in unum