quinta-feira, 22 de julho de 2010

O título de minha conferência é o mesmo de meu estudo de 1989, em que explico a “revolução” (o 1789 da Igreja, conforme a expressão do pe. Congar. O.P.) que os neo-modernistas quiseram empreender no Concílio “pastoral” dos papas Roncalli (João XXIII) e Montini (Paulo VI), entre 1960 e 1965, exatamente como um grande teólogo jesuíta, o card. Ludovico Billot, predissera a Pio XI em 1923: “não é preciso nem dizer que não conseguirão” , acrescentava o card. Billot, “mas veremos dias tão tristes quanto os dias finais do pontificado de Leão XIII e os iniciais do de Pio X”. Quando o papa Roncalli, pouco após sua eleição (outubro de 1958), anunciou subitamente a convocação de um Concílio Ecumênico (25 de maio de 1959), os neo-modernistas já estavam preparados (os piores inimigos da Igreja, no dizer do card. Billot, que conhecia bem suas intrigas).

A TRADIÇÃO CONTRA O CONCÍLIO

 
MONS. FRANCESCO SPADAFORA
 


Mons. Gherardini, em estudo recente (Lutero no Concílio de Trento, Divinitas, abril de 1995), baseando-se no decreto tridentino De Sacra Scriptura et Traditionibus, de 8 de abril de 1546, assim resume a heresia basilar do agostinismo rebelde: “o princípio formal de seu protesto, o “sola Scriptura”, era a negação do magistério eclesiástico enquanto intérprete indispensável da Sagrada Escritura; era a resistência à Tradição, resistência que, para o Reformador, significava liberação”. A resposta do Concílio de Trento, bem conhecida, é repetida solenemente pelo último grande Concílio Dogmático (Vaticano I, 24 de abril de 1870): “[Das fontes da Revelação] Ora, esta revelação sobrenatural, conforme a fé da Igreja universal, declarada pelo Santo Concílio de Trento, ‘está contida nos livros escritos e nas tradições não escritas que, recebidas pelos Apóstolos da boca do próprio Cristo ou pelos mesmos Apóstolos sob inspiração do Espírito Santo e transmitidas como de mão em mão, chegaram até nós’ [Conc. Trid., v. 783]. Esses livros do Antigo e Novo Testamento, íntegros em todas as suas partes, tais como se enumeram no decreto deste Concílio e estão contidos na antiga edição da Vulgata, têm de ser aceitos como sagrados e canônicos. Note-se que a Igreja têm-nos por sagrados e canônicos, sendo logo aprovados por Ela, não porque fossem compostos pela só indústria humana, nem somente porque contivessem a Revelação sem erro, mas porque, escritos por inspiração do Espírito Santo, têm Deus por autor, e como tais foram transmitidos pela própria Igreja [cap. 4]” (Denz. 1787) A resposta segue o ensino unânime do Magistério, particularmente expresso por Pio IX, Leão XIII, São Pio X, Bento XV, Pio XI, Pio XII, e até pelo próprio Paulo VI (Discurso aos teólogos, 1967).

Em sua tese, de título claro, denominada O Magistério da Igreja, a norma junto ao exegeta, Mons. Mário Merendo reproduz e comenta os documentos que se referem diretamente a tal assunto; dentre outros, os decretos dos dois últimos Concílios Ecumênicos (Trento e Vaticano I) e as encíclicas Providentissimus Deus (Leão XIII), Spiritus Paraclitus (Bento XV, 1920), Divino Afflante Spiritu (Pio XII, 1943) e Humani Generis (Pio XII, 1950). “Não creria no Santo Evangelho – disse Santo Agostinho – se me não induzisse a autoridade da Igreja Católica”. (Contr. E. Manichael 5, 6; PL 42, 176). A Comissão Bíblica Pontifícia – arquitetada por Leão XIII a 30 de outubro de 1902, composta de cinco cardeais consultores – era um órgão do Magistério Ordinário. São Pio X, através do Motu Proprio de 10 de novembro de 1907, outorgou às decisões e aos decretos da Comissão Bíblica a mesma autoridade dos decretos das demais Congregações Romanas no que tange à doutrina aprovada pelo Soberano Pontífice.

Para fins da exegese católica, além do princípio dogmático fixado pelo Magistério Extraordinário (dos dois Concílios: Trento e Vaticano I) e ratificado pelos Romanos Pontífices até Paulo VI, faz-se mister ter-se em conta, pelo menos, três verdades reveladas, de fé divina e católica: a inspiração divina, a inerrância absoluta da Sagrada Escritura e a historicidade dos Evangelhos. Ademais, o magistério da Igreja mediante os decretos da Comissão Bíblica Pontifícia sancionou, juntamente com a historicidade dos Evangelhos, a autenticidade de nossos quatro Santos Evangelhos na ordem tradicional de sua redação: São Mateus, São Marcos, São Lucas e São João.

Tentativas pré-conciliares

Havia muito tempo, os neo-modernistas tratavam de se desfazer da Comissão Bíblica Pontifícia, i. é, do Magistério da Igreja, tal qual Lutero, contudo com mais perfídia. Almejavam o mesmo resultado, mas por meio do próprio Magistério Eclesiástico. Isso está documentado em Leão XIII e os estudiosos da Bíblia (Rovigo, 1976, 276 p.), na introdução do estudo sobre A Ressurreição de Jesus (idem, 1978, 246 p.) contra o jesuíta Xavier-León Dufour (que imita Will Marven, fundador da Redaktiongeschichte, que nega a Ressurreição) e, por último, em A Tradição contra o Concílio (Roma, 1989, 284 p.).

Primeira tentativa – Aludamos aqui brevemente à primeira tentativa, feita em 1948 pelo card. Suhard, arcebispo de Paris, que pede ao card. Tisserant (presidente vitalício da Comissão Bíblica Pontifícia) a abolição dos dois decretos dessa comissão, que defendem  a autenticidade mosaica do Pentateuco (1906) e a historicidade dos três primeiros capítulos do Gênese (1909). A resposta, em francês, carece de transparência, é longuíssima e possui algumas frases anfibológicas. Os progressistas exultam e começam a falar em “mitos” do Gênese. Pio XII claramente deplora, no Humani Generis, a interpretação fantasiosa dos que abusam, de forma suspeita, da carta enviada pelo card. Tisserant ao cardeal Suhard. O card. Bea, no seu comentário à encíclica, publicado em La Civiltà Cattolica (n. 101, 1950-IV, p. 417-430), é claríssimo sobre esse ponto.

Segunda tentativa – Em 1954, um texto é apresentado aos membros da Comissão Bíblica Pontifícia – quais sejam, os cardeais Ruffini, Mercati, Pizzardo e Tisserant (presidente vitalício, de 1937 até sua morte) - em que se solicita que sejam declarados superados os decretos emitidos pela própria Comissão Bíblica Pontifícia: era a ordem do dia da reunião! É nesse ensejo que, em 1955, o pe. A. Millier (secretário da Comissão Bíblica Pontifícia) e o pe. A. Kleinhans (subsecretário) publicam separadamente dois artigos em substância idênticos: “na medida em que se sustentem nos ditos decretos opiniões que não se refiram, nem direta nem indiretamente, às verdades relativas à fé e aos costumes, entende-se que o investigador pode prosseguir seus estudos com absoluta liberdade”. Os partidários da liberdade, com E. Vogt à frente (Bíblica, 1955, p. 564 e ss.), apreciam deveras ambos os artigos: constituem a tácita condenação à morte dos decretos da Comissão Bíblica Pontifícia.

Terceira tentativa – Esta vinculada diretamente com a precedente. Em 1957, aparece a Introdução à Bíblia, t. I, sob a direção de A. Robert e A. Feuillet (Desclée, Tournai, 880 p.). O grosso volume sai da forja dos modernistas franceses: o Instituto Católico de Paris – que no passado já contava entre seus professores com Ernest Renan (racionalista) e Alfred Loisy (modernista) e, no momento de que falamos, com Pierre Grelot (que virá a ser membro da nova e bizarra Comissão Bíblica) – está em perfeita harmonia com o pe. Lyonnet, S.I., do Instituto Bíblico Pontifício. O livro, que milita contra a doutrina católica da inspiração individual, favorecendo a presumida inspiração coletiva e a limitação da inerrância (Henri Cazelles), beneficiou-se da campanha publicitária feita a seu favor pela Comissão Bíblica. Evita-se desta feita que o Dicastério Supremo, o Santo Ofício, intervenha e o condene: o card. Bea se oferece para revisá-lo e corrigir seus erros a fim de permitir uma nova edição. Descobrimos agora quais eram os promotores da proposição desaprovada em 1954: Paris e Roma, sempre. O pe. Lyonnet, S.I., era o deus ex machina que induzia seu protetor secreto, o card. Tisserant.

Apesar de renovarem as supracitadas tentativas, o Instituto Bíblico Pontifício já ministrava as “novidades” a seus alunos.  O pe. Lyonnet em pessoa dava o mal exemplo com o artigo O pecado original e a exegese de Romanos 5, 12, publicado na revista Recherches de science religieuse, nº 55, p. 63-85 (1956), onde nega que se possa apontar o texto de São Paulo como argumento bíblico para o dogma do pecado original; não obstante, trata-se de um texto cujo sentido, como o admitem todos, foi reconhecido em dois cânones do Concílio de Trento.

O ano de 1943, em que se publica a encíclica Divino Afflante Spiritu, de Pio XII, apresentava-se como o ano da “liberação” para os exegetas católicos: já está derrubado o muro – diziam – que separava os católicos dos protestantes e racionalistas; já se abandonou toda distinção; o que vale é a investigação da Bíblia mediante uma exegese exclusivamente filológica e histórica. No ano de 1943 começava uma nova era. O card. Bea afirmava: “o ecumenismo já se esboça entre os exegetas”. Só resta um inimigo de que se deve dar cabo: o exegeta católico que, em seu trabalho, segue fiando-se na interpretação autêntica, no sentido quem tenuit ac tenet Sancta Mater Ecclesiae [que sustentou e sustenta a Santa Madre Igreja], e que segue crendo na inspiração divina (ilustrada na encíclica Providentissimus Deus), na inerrância absoluta, na historicidade dos Evangelhos etc.

Quarta tentativa – A 3 de setembro de 1960 apareceu, em La Civiltà Cattolica (p. 449-460) um artigo adrede intitulado Para onde vai a exegese católica?  A resposta saltava aos olhos ao se ler o artigo: a exegese católica muda de roupagem, se camufla, abandona todo princípio dogmático. O autor, o pe. Alonso Schökel, S.I., atribuía essa capacidade de subversão à encíclica Divino Afflante Spiritu de Pio XII. O Instituto Bíblico Pontifício enviou um trecho do artigo a todos os bispos italianos; era um manifesto propagandístico em vista do iminente concílio anunciado de súbito pelo papa Roncalli, o ingênuo (verdadeiro ou fingido?) João XXIII. O Instituto Bíblico Pontifício julgava que chegara o momento de sair das sombras. Já havia mais de dez anos (com o novo reitor, o pe. E. Vogt) que os professores Lyonnet, Zerwick, Schökel e Dyson vinham incutindo na doutrinação de seus alunos – com maior ou menor prudência – sua “revolução” neo-modernista. Os mais preparados em teologia se surpreendiam e escandalizavam; os demais se deixavam fascinar pelas “novidades”. Uns e outros confiavam a terceiros, por motivos diferentes, sua perplexidade ou entusiasmo. Citarei apenas dois exemplos.

Eu ensinava em Roma desde 1950; dirigia a Rivista Biblica fundada por mim (1953-1957), quando me veio visitar um excelente religioso brasileiro, Calisto Vendrame (1951-1953), para me falar da exegese dos livros I e II de Samuel lecionada pelo pe. Dyson, S.I. O pe. Vendrame lhe perguntara: “como se pode conciliar a doutrina da inspiração com a exegese que o sr. nos propõe?”. O professor lhe respondeu: “Mas como! Você ainda segue a doutrina da inspiração divina que o pe. Bea ensina?”.  O pe. Bea não era reitor desde 1949, mas continuava sendo professor. Quando lhe contei [ao pe. Bea] o episódio, ele me disse, visivelmente contristado: “O pe. Dyson não se dá conta do grave dano que está causando a seus alunos”.

Ao contrário, Luigi Morali e Leone Algisi de Bergame (1948-1950) estavam entre os mais entusiasmados: “Está disponível aos alunos uma nova teoria sobre a inspiração; contudo, não convém fazê-la pública”. Tal como o pe. Dyson, eles caçoavam do pe. Bea. Era uma espécie de maçonaria.

A reação do Santo Ofício


Até então, as tentativas feitas pelos renovadores, oficialmente anuladas, não haviam suscitado nenhuma reação, pelo menos na Itália. Deveu-se a Mons. Antonino Romeo a vivíssima reação que a aparição do artigo de pe. Schökel desencadeara. Mons. Romeo (1902-1979). era antigo aluno do Instituto Bíblico Pontifício (1924-1927), professor de Escritura Sagrada no Seminário Regional de Catanzaro, e, desde janeiro de 1938, professor auxiliar na Sagrada Congregação para os Seminários e as Universidades, de onde, durante 34 anos, levou a cabo um intenso, precioso e oculto trabalho (Para as suas obras, ver Palestra do Clero, 31 de outubro de 1979). A rigorosa refutação de Mons. Romeo, A encíclica Divino Afflante Spiritu e as novas opiniões, foi logo publicada na influente revista Divinitas (4/1960, p. 378-456), dirigida por Mons. Antonino Piolanti, reitor da Universidade Pontifícia de Latrão. Havia muito tempo que Mons. Romeo, tal como uma sentinela, seguia com atenção e denunciava com clareza as perigosas e errôneas novidades que surgiam nas publicações francesas, alemãs e holandesas. Sobretudo, acolhia com afabilidade paternal os alunos do Instituto Bíblico Pontifício que lhe iam expor seus problemas e esclarecer-se em seus estudos. Nesse momento, com seu erudito estudo, interrompia a marcha da “nova exegese”. Segundo a absurda tese de pe. Alonso Schökel, Pio XII havia dado ensejo a um “novo rumo” em exegese, livre de todo princípio dogmático! A encíclica Divino Afflante Spiritu, no dizer daquele, supera e anula a encíclica Providentissimus Deus de Leão XIII, ao mesmo tempo em que proclama a Carta Magna dos estúdos bíblicos! O pe. Schökel quase não faz referência a outra encíclica de Pio XII, Humani Generis, de 1950, muito clara e absolutamente capital para desfazer qualquer equívoco. A intervenção de Mons. Romeo deitava por terra tamanho absurdo.

O reitor do Instituto Bíblico Pontifício tentou reagir, mas sem penetrar no cerne da questão. O Santo Ofício interveio e se encarregou do problema. Após ouvir os principais acusados, os jesuítas Lyonnet e Zerwick, proibiu-os de continuarem ensinando, isolando-os em Roma. Desta feita, a 20 de junho de 1961 o Santo Ofício publicava, no Osservatore Romano um Monitum sobre a historicidade dos Evangelhos. Com todo o peso da autoridade e da responsabilidade do Dicastério Supremo, de onde emanava, o Monitum alerta aos exegetas para levarem em conta, em seu trabalho, as normas diretrizes da Igreja. Em verdade, o Monitum é uma sentença, e tal sentença foi a expressão derradeira do Magistério Eclesiástico, prestamente condenada à inanidade por Paulo VI, conforme veremos.

Os jesuítas do Instituto se opuseram ao Santo Ofício, ao declarar: “o Monitum não nos atinge”. Seguros da cumplicidade do card. Tisserant, o presidente que personificava a Comissão Bíblica Pontifícia, prepararam a represália, difundindo uma versão dos fatos em que se tachava Romeo e Spadafora de reacionários e caluniadores.

Sobre isso, vejamos o que fala Pierre Grelot, o alter ego do pe. Lyonnet, n’A constituição sobre a Revelação, a preparação de um projeto conciliar (Études, janeiro de 1966, p. 99-113). Ao falar da Comissão Teológica pré-conciliar, escreve: “tão logo se soube a composição da dita Comissão, tratou-se de ver dois pontos: 1) a maioria de seus membros e consultores tinha uma atitude decididamente conservadora; 2) os biblistas de profissão eram contados em escasso número, de tal modo que não haveria possibilidade de ouvir sua voz. Esses dois fatos podiam acarretar graves conseqüências ao projeto De Revelatione, tão estreitamente ligado às questões bíblicas. Um sintoma ainda mais revelador: não se escolhera nenhum especialista de um corpo professoral de um organismo oficial, tal como o Instituto Bíblico Pontifício de Roma, para que auxiliasse com seus autorizados conselhos o trabalho daquela comissão. O fato era tanto mais notável pois que, à mesma época, alguns círculos romanos sustentavam uma áspera campanha contra o citado Instituto e contra a orientação atual da exegese católica”. Pe. Grelot adiciona uma nota: “tal campanha era de domínio público: manifestava-se através de artigos e panfletos”. E cita o artigo de Mons. Romeo A encíclica Divino Afflante Spiritu e as novas opiniões (Divinitas, 4/1960), a réplica do Instituto Bíblico Pontifício publicada em Verbum Domini (1981, p. 3-17), e meu comentário ao Monitum do Santo Ofício. Pe. Grelot segue, imperturbável: “a ofensiva logo sucederá em privar de sua cátedra, mas não de seu título [sic], a dois professores do Instituto Bíblico, com grande escândalo para os exegetas do mundo inteiro. Tratava-se – acrescenta a nota – dos padres S. Lyonnet e M. Zerwick; o primeiro, decano da Faculdade Bíblica; o segundo, professor. A julgar pelo que sabemos, parece que a campanha de calúnias desencadeada contra eles confundiu as autoridades encarregadas de velar pela fé da Igreja [o Santo Ofício], mas a Companhia de Jesus não encontrou motivo nenhum para substituir os dois professores; daí resultou uma situação ambígua que durou dois ou três anos para esclarecer-se”.
Como elucidou a introdução, os dois padres ouvidos pelo Santo Ofício não puderam negar os fatos de que comissão os acusava: o ensino (e a difusão mediante artigos) de erros relacionados à inspiração, à inerrância dos Santos Livros, a historicidade dos Evangelhos; também o artigo do pe. Lyonnet, O pecado original e a exegese de Rom. 5, 12, publicado em Recherches de Science Religieuse, (n. 44, 1956, p. 63-84) que negava que Rom. 5, 12 versa sobre o pecado original, apesar da definição em contrário do Concílio de Trento (ver meu artigo Rom. 5, 12: exegese e reflexões dogmáticas, em Divinitas, 1960, p. 289-298). Tratava-se de algo muito diferente de uma campanha de calúnias!
O pe. Grelot continua: “não existia nenhuma relação entre essas datas convergentes?” (i. é, entre esses antecedentes e a ausência de expertos provenientes do Instituto Bíblico Pontifício na Comissão Teológica pré-conciliar).
Note-se a pretensão (verdadeiramente grave) de a Companhia de Jesus opor-se ao ato do Santo Ofício. Era o espírito que animava e anima os tais antigos alunos do Instituto Bíblico Pontifício: o magistério da Igreja e o próprio Dicastério Supremo, desautorizados pelos jesuítas do Instituto!
O projeto feito pela tal comissão “de conservadores”, conclui pe. Grelot, refletia uma orientação que perpetrava um retrocesso de cinqüenta anos, pelo menos, nos estudos bíblicos, além do “torpedeamento inconfessado da encíclica de Pio XII (Divino Afflante Spiritu, 1943), uma rematada agressão contra o movimento bíblico como um todo. Intentaram defender juntos o que a maioria dos membros da Comissão considerava como a fé e a teologia autênticas, contra o que reputam como perigosos equívocos da exegese contemporânea”. (p. 101). “A Comissão preparatória atuava de boa fé”, admite pe. Grelot (quanta bondade!). Eis a versão do Instituto Bíblico Pontifício, publicada em todo lugar e agora introduzida até na nova edição italiana da História da Igreja organizada por R. Flick e V. Martin.
Desforra modernista
Chegamos assim à tempestade que castigou Roma durante o Concílio Vaticano II (1960-1965). O espírito de desforra contra o Santo Ofício prevalecia desde há muito entre os teólogos franceses, belgas e alemães. Para se convencer disso, basta recorrer às páginas que o jesuíta Giacomo Martina dedica a essas escolas teológicas em relação ao Concílio, no primeiro tomo da obra Vaticano II, balanço e perspectivas, vinte e cinco anos depois (1962-1987), escrita por René Latourelle (Cittadella, Assis, 1987, p. 27-82). Nelas se encontram o bordão habitual: tal pessoa, condenada (ou combatida) pelo Santo Ofício, entra no concílio como o dominador, faz votar seus erros e sai como o glorificado. Poderíamos chamar às páginas de pe. Martina de o guia das “humilhações” impostas pelo Santo Ofício e de suas “vítimas” exaltadas, a partir do Concílio e ao transcurso das vergonhosas décadas pós-conciliares.
 Comecemos pelos padres proletários: O Santo Ofício interveio (1959); Paulo VI, que era partidário deles, juntamente com o episcopado francês, deu-lhes a desforra (1965) no Vaticano II (p. 47 e ss.): “a crise de alguns sacerdotes proletários e a obediência dramática da maioria deles produziu uma forte impressão na opinião pública, em França e em outros lugares. De fato, em vários círculos, eclesiásticos e não eclesiásticos, aumentava o mal-estar, já existente por outras razões” (p. 46-49).
 O tal “mal-estar” aparecerá inclusive em outros episódios: 1) a obra de Roger Albert, O Pontificado de Pio XII (Paris, 1952), “síntese magistral”, foi mal vista pela Cúria Romana; mas, felizmente, a idéia de incluí-la no Índice desapareceu de pronto (hoje em dia, servem-se da obra de Aubert e Martina, sobretudo Martina, para obstar o processo de beatificação de Pio IX); 2) A vida de Galileu, de Mons. Paschini, que, durante algumas décadas, foi reitor da Universidade de Latrão e “historiador consciencioso”: em 1942, o Santo Ofício suspendeu, por tempo indeterminado, a publicação do tal estudo, que apenas muitos anos mais tarde – graças à intervenção de um de seus antigos discípulos ante Paulo VI, Mons. Maccarone – se pôde editar “bem a tempo de ser citado na Gaudium et Spes: mais uma vez se passava da interdição ao elogio implícito de uma obra, graças ao Concílio” (1965); ou, mais especificamente, por causa do cardeal Wojtyla (por petição dos padres Congar e De Lubac), que, após lograr o papado, não pára de denunciar as “maldades” da Igreja e de pedir perdão a todo o mundo; 3) Primo Mazzolari (1890-1959), A mais bela aventura, proibido pelo Santo Ofício em 1934, assim como Eu também amo o Papa e Compromisso com Cristo, em 1943. João Paulo II estende a mão a Mazzolari em sua encíclica Dives in Misericordia, mas já em 1966 todas as suas obras foram reimpressas; 4) o mesmo se deu com Lorenzo Milani (1923-1967), com Maritain e com o jesuíta americano John Courtney Murray, que “apesar de ter sido reduzido ao silêncio por quase uma década, recobrou o direito de falar durante o Vaticano II; chegou até mesmo a impor suas idéias na Dignitatis Humanae(p. 45); 5) entre 1945 e 1950, contra a nova teologia dos jesuítas Daniélou, De Lubac etc., sublevaram-se os mais eminentes teólogos do Angelicum, o pe. Réginald Garrigou-Lagrange, O.P., e o pe. Labourdette, na Revue Thomiste, nº 56 (1946), p. 353-372. Pio XII condena a nova teologia em Humani Generis (1950): “entre os teólogos franceses – escreve Martina – se destacam os dominicanos Chenu e Congar, e os jesuítas De Lubac e Daniélou; mas outro jesuíta merece lembrança aqui: o pe. Teilhard de Chardin, paleontólogo, ‘conduzido por suas descobertas a intentar uma nova síntese, também é objeto de uma severa vigilância’. Os quatro primeiros exerceram uma grande influência no Concílio, enquanto Teilhard de Chardin, falecido antes do Concílio, suscitou grande admiração em numerosos círculos”.
 Em seguida, pe. Martina trata de cada um deles em separado. Sobre o pe. Chenu (que estava em Saulchoir desde 1937 até 1942, e foi teórico e inspirador dos padres proletários quando lhe proibiram o exercício do magistério, sendo afastado de Paris em 1954), o pe. Martina destaca: “o Concílio o traria novamente à tona” (p. 60). O mesmo ocorrerá com o livro de Congar, Novo mundo e palavra de Deus (1950), cuja nova publicação será permitida em 1968 (francês) e 1972 (italiano), num clima diferente, em que se acharam normais e moderadas as proposições julgadas perigosas em 1950. “Já se não tratava de adaptar o catolicismo e a Igreja ao mundo moderno, mas de repensar e reformular as verdades cristãs. No Concílio, o pe. Congar fora membro da Comissão Teológica e de várias outras comissões conciliares” (p. 52). Idêntico curriculum vitae tem De Lubac e Daniélou. Por isso tudo, as medidas tomadas pelo Santo Ofício e a encíclica Humani Generis eram expressões do Magistério da Igreja. Contudo, na exposição do pe. Martina aparecem outras tantas atitudes errôneas, corrigidas depois pelo Concílio.
 A Aliança Européia durante o Concílio 
Os rebeldes ao Magistério da Igreja, biblistas e teólogos, finalmente encontraram, em seu pletórico e “pastoral” Vaticano II, o ambiente ideal e a ocasião favorável para sua vingança contra o Santo Ofício, i. é, contra a doutrina católica, conservada integralmente e proposta fielmente tanto pelo Magistério Infalível da Igreja e pelo Magistério Extraordinário (Trento e Vaticano I) quanto pelo Magistério Ordinário de Pio IX, Leão XIII, São Pio X, Bento XV, Pio XI, Pio XII, e até João XXIII em seu discurso de comemoração dos cinqüenta anos do Instituto Bíblico Pontifício (Osservatore Romano, 19 de fevereiro de 1960).
 Naturalmente, os rebeldes se coligaram: cardeais e bispos, com seus “especialistas” ou entusiastas, convergiam em direção ao grupo que, como predissera o card. Billot, “dominaria e dirigiria o Concílio, impondo seus erros”.  Era o grupo dos neo-modernistas, que logo se denominará Aliança Européia. Seus corifeus foram: Alfrink, superior da Holanda; Joseph Frings, arcebispo de Colônia; Achille Liénart, bispo de Lille; Frans König, arcebispo de Viena; Eugène Tisserant; Agostino Bea, S.I.; o canadense Léger; e os italianos Lercaro, arcebispo de Bolonha e Giovanni Battista Montini, arcebispo de Milão. Todos, salvo Léger e Montini, eram antigos alunos do Instituto Bíblico Pontifício! Merece especial menção o cardeal Döpfner, um dos presidentes do Concílio, incrivelmente sectário. Dentre os bispos destaco Jan van Dodeward, holandês, antigo aluno do Instituto Bíblico Pontifício (1939-1941), morto a 9 de março de 1966, à idade de 52 anos, após retornar à Holanda.
 Destaquemos dentre os especialistas o dominicano Edward Schillebeeckx, da Universidade de Nimega, principal autor do herético catecismo holandês; os alemães Karl Rahner, S.I., Hans Küng e Joseph Ratzinger; e os franceses Henri de Lubac, S.I., M.D. Chenu, O.P., Y. Congar, O.P.. Exemplo típico do neomodernista senhor de si, depreciador de Roma, como aqueles jesuítas colegas seus (o pe. Smuders etc.) que cooperaram no dito catecismo, o pe. Schillebeeckx é a alma do episcopado holandês, tal como Rahner é a do episcopado alemão, e Congar e Chenu, do episcopado francês. O Santo Ofício já intervira contra Rahner e Chenu; isso ocorrerá também contra Hans Küng e Edward Schillebeeckx.
 A primeira Assembléia Geral do Concílio celebrou-se a 13 de outubro. Revestia-se de uma extrema importância, já que se tratava de nomear os dezesseis membros de cada uma das dez Comissões Conciliares que teriam como tarefa emendar e preparar os projetos que deviam se submeter ao voto da Assembléia Geral. O Concílio inteiro estava, pois, em suas mãos.
 A primeira Assembléia Geral foi presidida pelo card. Tisserant, ladeado pelos cardeais Liénart e Frings. Ainda que o cardeal Felici se dispusesse a explicar aos 2.500 padres o procedimento que se deveria seguir à eleição dos dezesseis membros, dentre os da longa lista de consultores e especialistas que – havia muitos anos – trabalhavam na fase preparatória, o cardeal Liénart levantou-se prestamente e pediu que a eleição se retardasse uns dias, e que se confiasse às conferências episcopais a incumbência de preparar a lista dos elegíveis. A Assembléia aplaudiu a bandeiras despregadas. Em seguida, o cardeal Frings levantou-se e, falando também em nome dos cardeais König e Döpfner, apoiou a petição do cardeal Liénart. Novos aplausos da Assembléia.
 A petição foi aprovada pela Presidência. Um bispo holandês gritou a um de seus amigos: “é nossa primeira vitória!”. A Aliança Européia enviou uma “lista internacional” de 109 nomes, escolhidos cuidadosamente dentre os neo-modernistas. Oitenta por cento deles foram eleitos. Eram maioria em cada comissão, e assim chegaram a manobrar e dominar a quase totalidade dos padres conciliares.
 Após a primeira Assembléia Geral, naquela manhã de 13 de outubro, tão logo os padres saíssem do salão, foi celebrada a reunião do Conselho da Presidência, formada por dez cardeais nomeados pelo Papa. Os representantes da Aliança Européia, os cardeais Frings, Liénart e o holandes Alfrink, apoiaram entusiasticamente a proposta do episcopado holandês (pe. Schillebeeckx) de primeiro submeter à discussão o projeto sobre a liturgia, e só depois examinar a constituição dogmática a propósito da Revelação. O Conselho da Presidência aprovou a proposta de forma que – recebidos em audiência privada pelo Papa numa segunda-feira, dia 15 – não lhes custou trabalho conseguir do Papa aceitação à sua decisão.  A 16 de outubro foi comunicado à Assembléia o início da segunda Assembléia Geral.
 Era a segunda vitória da Aliança Européia, prelúdio do completo retrocesso – a começar pelo título – do importantíssimo projeto sobre a Revelação: De fontibus Revelationis. Destino idêntico sofreram as demais constituições, aprontadas ao longo de dois anos de trabalho preparatório. Aguardava-se o triunfo do espírito anti-romano. Assim surgia, com sinistros reflexos, aquela manhã de 13 de outubro, funesto presságio do desdobramento do Concílio, com os equívocos que impregnaram os textos das constituições dogmáticas, aurora funesta daqueles anos tormentosos que ainda hoje constituem a molesta herança pós-conciliar.
 A imprensa destacou, fazendo coro com os neo-modernistas, o lamentável episódio de 30 de outubro, assim contado pelo pe. Wiltgen (The Rhine flows into the Tiber, p. 28-29): “no dia seguinte ao de seu 72º aniversário, o cardeal Ottaviani interveio para protestar contra as profundas alterações que se pretendiam impor à Missa. O cardeal, por causa de sua cegueira parcial, falava sem texto, ultrapassando os dez minutos predefinidos a cada intervenção. O cardeal Tisserant (...) mostrou seu relógio ao cardeal Alfrink, e um técnico cortou a corrente elétrica do microfone. O cardeal Ottaviani percebeu o ocorrido ao percutir o microfone e, humilhado, voltou a seu lugar. Reduzira-se ao silêncio o cardeal mais importante da Cúria, a que os padres conciliares alegremente aplaudiram”.
 Alguns permitiram que se instalasse uma animosidade contida havia muito... Dirigia-se contra o Dicastério Supremo, contra o Santo Ofício, e em particular contra seu chefe, o card. Ottaviani, sentinela vigilante contra todo desvio doutrinal. Era, acima de tudo, uma vingança infligida pelo Instituto Bíblico Pontifício, devido à condenação imposta, em 1960, aos seus professores, os padres Stanislas Lyonnet e Maximiliano Zerwick e pelo afastamento do reitor àquela época. A campanha contra o Santo Ofício, urdida no estrangeiro e na Itália por antigos alunos do Instituto Bíblico, colhia seus frutos. Confirma-o o texto de Pierre Grelot, anteriormente reproduzido.
 Contra a constituição De fontibus Revelationis, elaborada pela Comissão Teológica presidida pelo cardeal Ottaviani, ergueram-se unânimes, com um non placet, os cardeais e os bispos da Aliança Européia, pois faltaria a ela “preocupações pastorais e ecumênicas”. As “preocupações pastorais” e “o ecumenismo” do Concílio nada mais eram que chamarizes, como afirmaria até o mais ingênuo padre conciliar. 
Os neo-modernistas queriam modificar a própria doutrina, e não o meio de sua exposição: nunca tiveram nenhuma preocupação pastoral ou ecumênica! Para se convencer disso, basta cotejar o texto precedente com o da nova comissão mista Bea-Ottaviani: texto equívoco “com conotações de má-formação congênita”; “ademais, por toda parte se nota a azáfama de firmar um compromisso entre as duas tendências opostas que se manifestaram no curso da primeira discussão conciliar” (Berti, p. 25). Tratava-se de aviltar a doutrina católica, na constituição dogmática mais importante!
 Inerrância das Sagradas Escrituras
 Quanto ao tema, temos inconteste exemplo das indignas artimanhas das comissões conciliares, que enganavam a massa ignara para fazê-la votar seus erros. Falo disso em meu livro A Tradição contra o Concílio (Volpe, Roma, 1989, p. 59-80). Desta vez tratava-se de uma doutrina, verdade de Fé, definida implicitamente pelo Concílio Vaticano I em sua declaração solene sobre a Inspiração (Denz. 1809): inerrância de fato e de direito, i. é, não somente a Escritura não contém erro nenhum, mas tampouco pode contê-lo. É doutrina católica por todos sabida: ver Introdução geral em O livro sagrado, de Sparadafora-Romeo-Frangipane (Padua, 1958; [Inerrância, A. Romeo], p. 161-174), com detalhada e esmerada documentação a partir das afirmações de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos Apóstolos: “a Igreja, ao afirmar a inerrância absoluta das Escrituras, segue o ensinamento de Jesus e dos Apóstolos, assim como o dos Padres” (p. 159). A encíclica Providentissimus Deus (1893, E. B. nn. 125-127) afirma a inerrância absoluta dos textos inspirados: “a inspiração divina é incompatível com o erro: por essência, não só exclui o erro, mas também a causa, pela necessidade mesma por que Deus, verdade soberana, não é autor de erro nenhum (...) Tal é a crença antiga e constante da Igreja, definida solenemente pelos Concílios de Florença e de Trento, confirmada enfim e proposta mais expressamente pelo Concílio Vaticano I (...) Daí, de nada serviria ao Espírito Santo ter escolhido alguns homens para que servissem de causa instrumental das Escrituras, se alguma falsidade pudesse escapar aos escritores, apesar da impossibilidade de errar do Autor inicial (...) Tal sempre foi o sentimento dos Santos Padres” (citam-se palavras de Santo Agostinho e de São Gregório Magno). A encíclica Spiritus Paraclitus (1920) confirmou, ratificou e amplificou o luminoso ensinamento da encíclica Providentissimus Deus.
 Pio XII, na encíclica Divino Afflante Spiritu (1943), comemorando o cinqüentenário da encíclica Providentissimus, confirma a inerrância absoluta das Escrituras. Após repetir as palavras da encíclica: “de forma nenhuma se permite (...) admitir que o autor sagrado pudesse errar, pois que a inspiração divina, por natureza, não só exclui o erro, mas também sua causa pela necessidade mesma por que Deus, verdade soberana, não é autor de erro nenhum”, acrescenta: “eis, pois, a doutrina que nosso predecessor, Leão XIII, expôs com profundidade, e que Nós, com Nossa autoridade, novamente propomos e inculcamos, a fim de que todos a conservem com zelo” (E. B. nn. 538-540).
No votum proposto ao Concílio, De definenda absoluta inerrantia S. Scripturae [Da definição da inerrância absoluta da Sagrada Escritura], havia exaustiva documentação. Quanto a isso, cfr. Acta et Documenta, 1ª série (Antepreparatoria, t. IV, pars I, 1, Studia et vota; Universidade de Latrão, p. 263-270).
Em sua proposta, de forma diferente, o Instituto Bíblico Pontifício insinuava contra o ensinamento do Magistério a limitação da inerrância apenas às verdades de fé e de costumes (!), erro condenado expressa e energicamente por Leão XIII, na encíclica Providentissimus; por Bento XV, na encíclica Spiritus Paraclitus e por Pio XII, na Divino Afflante Spiritu; e, apesar disso, H. Cazelles a propôs novamente, na Introdução à Bíblia dirigida por A. Robert e Feuillet (t. I, 1957, p. 58-65), com o apoio do Instituto Bíblico Pontifício, de onde saíra, o que explica o interesse e o papel de revisor assumido pelo pe. Bea, a fim de impedir a condenação daquele. Tal era o ensinamento que se dispensava no Instituto. Isso esclarece porque no projeto De duplici fonti Revelationis [Da dupla fonte da Revelação], feito com esmero pela comissão preparatória, a inerrância absoluta da Escritura – além de apresentá-la no título do segundo capítulo – se formulava e se ilustrava claramente em dois parágrafos: o de nº 12, Da inerrância enquanto corolário da inspiração, e o de nº 13, De que modo há-de se julgar a inerrância.
 O projeto da Comissão Preparatória foi recusado, oferecendo-se a preparação do projeto sobre a Revelação a uma comissão mista composta por teólogos e membros do secretariado para o ecumenismo, liderados pelos cardeais Ottaviani e Bea, respectivamente. O texto, aprovado e enviado aos padres (abril de 1963), ainda exibia a doutrina católica sobre a inerrância absoluta da Sagrada Escritura: “uma vez que Deus é o Autor principal da Sagrada Escritura, toda ela está divinamente inspirada, estando totalmente isenta de erro”.
 Dessa forma, o exame e as emendas do projeto passaram apenas pela comissão doutrinal; os capítulos III e IV, que versavam da Sagrada Escritura, foram confiados a uma subcomissão presidida pelo bispo de Haarlem, o holandês J. van Dodeward, antigo aluno do Instituto Bíblico Pontifício. Este tentara obter que o Concílio aprovasse a proposta do Instituto mediante a introdução no texto de um simples adjetivo, salutaris. Era a última redação que se submeteria a voto (21-9-1965), quase à última sessão do Concílio. Dentre os padres, já mui fatigados, qual notaria a mudança? Eis aqui o texto emendado: “posto que há de se considerar como afirmado pelo Espírito Santo tudo o que os autores inspirados ou hagiógrafos afirmam, é mister também sopesar, por conseguinte, que os livros da Bíblia em sua integridade, com todas as suas partes, ensinam com certeza, fielmente e sem erro, a verdade salvífica”. De sorte que o texto já não falava da imunidade ao erro, mas de verdade salvífica que a Escritura Sagrada sem erro continha. A frase poderia assim ser compreendida (ademais, era seu verdadeiro sentido): as Escrituras inspiradas contém tão-somente a verdade ou as verdades que remetem ao dogma e à moral. Daí não espantar que à primeira votação do nº 11 do texto emendado (cfr. G. Caprile, art. cit., p. 223-227) deram-se 56 votos em completa recusa ao texto, além de umas 300 petições, senão mais, à mudança da expressão veritatem salutarem; os 184 padres pediam a supressão do adjetivo salutarem, furtivamente introduzido no texto.
 O telefonema de um excelente prelado da Secretaria de Estado me advertiu prontamente da adição arbitrária do adjetivo salutaris no texto, interpretada logo após como frustrada tentativa de conseguir (com os votos da massa amorfa, que nada notaria) que se aprovasse a limitação da inerrância apenas às verdades de fé e costumes, conforme anseio formulado pelo Instituto Bíblico Pontifício.
 A maioria dos membros “liberais” ou modernistas na Comissão Doutrinal, além da presidência de Dodeward na subcomissão, explica a ação desonesta, denunciada ao Soberano Pontífice pelos padres, como relata o pe. Caprile. Paulo VI interveio (18 de outubro de 1965) com uma carta à Comissão Teológica para que se retirasse ao texto a expressão intrusa veritatem salutaris.
 A 19 de outubro, também sobre esse ponto, quis o card. Ottavianni que o card. Bea tomasse a palavra durante a reunião da Comissão, com vistas à revisão do texto. Este apresentou vários argumentos contra a fórmula veritatem salutaris, destacando que a fórmula em questão sequer havia sido aprovada no curso da reunião da Comissão Especial Mista para o projeto De Divina Revelatione, mas que se agregara após.
Enfim, eliminou-se o adjetivo salutaris, mas se quis a todo custo inserir o seguinte texto em lugar do veritatem: “veritatem, quam Deus nostrae salutis causa Litteris Sacris consignari vuluit”. Desta feita se obteve o texto definitivo, que foi aprovado: “na redação do livros sagrados Deus elegeu a homens, os quais empregou usando de suas próprias faculdades e meios, de forma que, obrando Ele neles e por eles, escreveram, como verdadeiros autores, tudo e somente o que Ele queria. Logo, como tudo o que os autores inspirados ou hagiógrafos afirmam deve ter-se como afirmado pelo Espírito Santo, há-de se confessar que os livros da Escritura ensinam firmemente, com fidelidade e sem erro, a verdade que Deus quis consignar às sagradas letras para nossa salvação” (Constituição Conciliar Dei Verbum, nº 11).
 A respeito da intervenção do card. Bea, escreve o pe. Schmidt (Agostino Bea, o cardeal da Unidade, Roma 1987, p. 630): “o card. Bea sentia-se tocado muito de perto, já que se tratava de uma matéria que lecionara durante décadas no Instituto Bíblico Pontifício. Para tanto, dedicou-se a fundo contra a sobredita reforma, pedindo que se omitisse o adjetivo ‘salutaris’. A fórmula era ambígua, dizia Bea, e mais tarde se poderia abusar dela com toda tranqüilidade a fim de se sustentar a interpretação restritiva. Conforme pe. Yves Congar, a intervenção do card. Bea havia sido severamente julgada mesmo por colaboradores mais achegados ao cardeal. O pe. Stanislas Lyonnet, em resposta, disse que “inclusive aqueles, a quem parecia inoportuna a intervenção do cardeal, logo reconheceram que se havia colhido ditosos frutos:  a fórmula proposta e adaptada pela comissão, além de evitar a expressão ‘veritas salutaris’ [verdade salvífica], como vaticinara o cardeal, conservou, não obstante, de maneira clara e não ambígua, o laço entre a verdade bíblica e o plano de salvação””.
 Assim o pe. Lyonnet, inspirador e alma dos exegetas neomodernistas, avalizava a interpretação errônea e pertinaz dos confrades. Ver a esse respeito o artigo do pe. Ignace de la Potterie, seu discípulo, publicado em fevereiro de 1966 na Nouvelle Revue Théologique (p. 149-169), e minha refutação em Renovatio, outubro de 1966 (p. 45-62): A inerrância da Sagrada Escritura, aprovada e certificada com multidão de provas pelo card. Bea em seu livro A palavra de Deus e a Humanidade (Cittadella, Assis, 1967, p; 184-191). Apesar disso, a incrível tese herética de Stanislas Lyonnet e Ignace de la Potterie foi repetida escandalosamente por La Civiltà Cattolica (4-1-1986) em seu editorial A Revelação na vida da Igreja (p. 3-14).
 Historicidade dos Evangelhos
 Outro exemplo em Dei Verbum concerne à origem apostólica de nossos quatro Evangelhos. Além da inserção salutis nostrae causa, aí repetida na nota 41, faz referência à instrução Sancta Mater Ecclesia da Comissão Bíblica Pontifícia (11 de abril de 1964); no texto se reproduzem algumas de suas frases. O pe. Schmidt, a propósito de tal texto, assim apresenta a obra do card. Bea, que fora deste autor e promotor (p. 482): “outros estudos respeitavam à exegese. O primeiro tratava, mais uma vez, do problema da historicidade dos Evangelhos Sinóticos. Não contente em pôr a disposição dos padres conciliares – em finais de 1962 – um opúsculo sobre tal tema, o cardeal se esforçou energicamente para que a Comissão Bíblica Pontifícia – de que era membro – publicasse uma instrução especial, em que ativamente cooperou. Foi também ele que, a 11 de março, apresentou o projeto na sessão dos cardeais membros”.
 O que o pe. Schmidt não disse – ou apenas deixou entrever – revelou-se mais tarde: desde 1961, o pe. Bea preparara o tal documento (ou melhor, o preparara o pe. Lyonnet) com a intenção de que fosse aprovado pela Comissão Bíblica Pontifícia. O card. Ottaviani mo remetera para que o examinasse; de imediato dei-me conta de que se pedia aos exegetas católicos que se aplicasse à exegese dos Evangelhos Sinóticos (São Mateus, São Marcos e São Lucas) o sistema racionalista da Formgeschichte [História das Formas], de Bultmann-Dibelius. Nascido por volta de 1920, esse sistema fora refutado por católicos e protestantes: nega a inspiração divina, a autenticidade e a historicidade dos Evangelhos, ao pretender que são obras de autores desconhecidos, redigidos pelo menos quarenta anos depois da morte do Redentor – tempo necessário à ação criadora da “comunidade primitiva”...
 A Instructio devia influenciar os padres conciliares. Tinha por título e objeto Da verdade histórica dos Evangelhos, i. é, não a historicidade! (dela não se fala no texto), senão a verdade que se pode extrair dos Evangelhos! O mesmo jogo, sempre! Em realidade, tornavam seus alguns postulados da Formgeschichte. 
Apresentado à Comissão Bíblica Pontifícia pelo card. Bea, e, como de costume, defendido pelo card. Tisserant, o documento foi repelido pelos demais membros, os cardeais Ruffini, Pizzardo e Mercatu. Após a morte de João XXIII, o card. Bea, insistente, obteve de Paulo VI a nomeação de novos membros para a Comissão Bíblica Pontifícia: os habituais cardeais Alfrink, König, Liénart; ao mês de março de 1964 apresentou-lhes “seu” documento, a famigerada Instructio herética Sancte Mater Ecclesia, que, mais tarde, será citada e repetida textualmente pela Comissão Teológica do Concílio!
 Por que tanto trabalho e insistência para promover a Instructio, tanta solicitude em influenciar aos padres conciliares? Era para demonstrar que no sistema – inculpado – da Formgeschichte, havia algo de bom; que os jesuítas do Instituto Bíblico Pontifício que o aplicavam à exegese dos Evangelhos usavam-no licitamente, com aprovação do Magistério; que o Santo Ofício se equivocara no Monitum de 1961 e na condenação da dupla Lyonnet-Zerwick.
 Era a desforra do card. Bea contra o card. Ottaviani – tal como escreveram, mal retornassem a Roma, Lyonnet e Zerwick, em La Stampa e em Il Corriere della Sera. Todos os neomodernistas, a começar pelo card. Martini, continuaram fazendo da funesta Instructio seu cavalo de batalha contra a historicidade dos Evangelhos, a favor da Formgeschichte, difudida em jargão com o nome de “método histórico-crítico”.
 Entretanto, a Instructio não tinha – e não tem – valor nenhum. A única verdade concernente ao dogma seria a historicidade dos Evangelhos, e na Instructio é proposto um caminho para negá-la. Qualquer exegeta pode apontar com o dedo a fragilidade e a falta de fundamento dos diversos postulados da Formgeschichte – que a Instructio faz parecer seus – e demonstrar, caso a caso, a inconsistência científica das “novidades” propostas e sua incompatibilidade com a hermenêutica católica.
 Retificação tardia do card. Bea
  historicidade plena dos Evangelhos, por sua vez, é e continua sendo verdade de fé. O próprio card. Bea, alguns meses antes de sua morte, ratificou, no livro já citado, a doutrina católica, ao apresentar um comentário preciso sobre Dei Verbum (p. 240-255). De tal modo se contradisse a si mesmo – uma vez que já não se poderia sustentar enfaticamente a inspiração divina da Sagrada Escritura e sua inerrância absoluta, admitindo de pronto o sistema dos racionalistas – que retira justamente a negação a tais dogmas e ainda faz completa abstração do Magistério da Igreja! : “com efeito, partindo dos estudos de crítica literária – especialmente a dos gêneros literários, escreve Bea – vários homens de ciência não apenas puseram em dúvida a autenticidade dos Evangelhos, i. é, o fato de remontarem aos autores de cujos nomes levam, mas também negaram inclusive sua origem apostólica, i. é, que se refiram efetivamente à prédica dos Apóstolos. Terminou-se por negar o valor histórico dos Evangelhos, com grandíssimo dano para a fé, evidentemente”. (p. 240 e ss.)
 Ademais, desta feita comenta no nº. 19 da constituição Dei Verbum: “em respeito à afirmação inicial, destacamos a força extraordinária – única em seu gênero na história de nossa constituição – com que se afirma o caráter histórico dos Evangelhos. Inicia-se com grande solenidade: “a santa Madre Igreja [...] creu e crê”, e continua insistindo: “firme e constantemente”. E como se isso não bastasse, se acrescenta que a Igreja “afirma sem vacilar” a historicidade dos quatro Evangelhos. Este último inciso – explica o cardeal em nota – acrescentara-se quase ao fim da última revisão do texto, para sanar à uma justa preocupação: de que se expressara e se afirmara sem equívocos a historicidade dos Evangelhos (cfr. G. Caprile, art. cit., p. 228 e ss).
 “Quando sabemos – continua o card. Bea – quantas ruínas se cumulam devido à História das Formas – sobretudo com a escola denominada ‘Desmistificação dos Evangelhos’, tal força não surpreende. Constitui a expressão da grave preocupação do Concílio perante os perigos reais que ameaçavam a fé dos cristãos, não somente a dos católicos”. O documento conciliar define a seguir o caráter histórico dos Evangelhos ao afirmar de maneira concreta a fidelidade dos Evangelhos na transmissão do que Jesus “fez e ensinou realmente [reapse]”. O card. Bea repete em substância o que decretara categoricamente o Monitum do Santo Ofício.
 Desgraçadamente, a responsabilidade do card. Bea é, e continua sendo, gravíssima, em razão do aval dado à Instructio (que seus confrades neomodernistas e os alunos do novo Instituto Bíblico Pontifício continuam alegando para justificar o desprezo ao Monitum do Santo Ofício), e da interpretação errônea, pouco sincera, do texto conciliar de Dei Verbum.
 Além disso, a intervenção do cardeal para excluir o salutaris tranqüilizou os padres conciliares, levando-os a votar a favor do texto definitivo – assim acreditava e queria ratificar a doutrina católica da inerrância absoluta, ainda que mesmo aqui reinasse o equívoco.
 A intervenção do Papa e do cardeal, como na questão da historicidade dos Evangelhos, com a inclusão do inciso “cuja historicidade afirma sem vacilar”, tranqüilizou as centenas de padres que protestaram contra a ambigüidade do texto emendado e que denunciavam as intrigas dos neomodernistas da Comissão Doutrinal. Mas ainda assim as proposições seguintes da Instructio foram aprovadas, introduzidas justamente a fim de manter o equívoco.
 E isso é apenas um esboço dos desdobramentos do Concílio!

II Congresso Teológico da Si Si No No, 1996

fonte:http://www.capela.org.br/Crise/Vaticano2/spadafora.htm